1.
Eu vi uma barata saindo do bueiro. Eu vi um monte de baratas saindo de
um bueiro. Não. Eu sonhei com baratas saindo do bueiro. Eram muitas baratas
saindo do bueiro. O que eu vi mesmo foi a cabeça. Uma cabeça ao lado do bueiro.
Cara, eu vi uma cabeça. Parecia que a cabeça tinha sido... Eu não acreditava.
Olhava pra cabeça e pensava que não podia ser uma cabeça aquele volume escuro
atirado ao lado do bueiro. Mas era uma cabeça. De homem. Toda ensangüentada. E
parecia que tinha mesmo sido arrancada. Arrancada, cara. A cabeça foi arrancada
e atirada perto do bueiro. Quem atirou deve ter pensado que a cabeça iria rolar
pra dentro do bueiro, mas ela parou ao lado do bueiro. E eu ia só atravessando
a rua. Tinha acabado de comer um xis. Tava voltando pra casa. Pra quê que eu
tenho que ver uma cabeça? Quase vomitei em cima da cabeça. Vomitei nas baratas.
Mas isso foi no sonho. Na real, não tinha baratas. Tinha um olho meio que
saindo pra fora da cabeça. Eu ti um acesso de curiosidade mórbida e quanto mais
não queria olhar aquele troço mais olhava e procurava detalhes, procurava
reunir os pedaços de cérebro espalhados. De dentro do ouvido saia uma gosma
branco-esverdeada que eu não soube definir o que era. Impossível saber a idade
da cabeça. Era homem por causa do cabelo com corte de cabelo de homem mas
também poderia ser uma sapata. A cabeça de uma sapata foi arrancada por um cara
que perdeu a mulher pra sapata. O cara jogou a cabeça de dentro do carro pra
ela cair dentro do bueiro e a maldita cabeça da maldita sapata parou na beira
do bueiro. E não caiu. E quando ele (o cara) estava dando uma ré pra empurrar a
cabeça da sapata pra dentro do bueiro, percebeu que vinha gente, que era eu e
caiu fora. E eu encontrei a cabeça. Mas era tudo viagem. Não tinha carro nenhum
na rua. Só eu e a cabeça e era uma cabeça de homem. Ta... não sei porque eu
acho que é de homem, mas eu olho e SEI que é uma cabeça de homem. Amassada,
ensangüentada, completamente avariada, esmagada na frente, partida atrás, uma
massa disforme de cores variadas, uma cabeça de homem. Faço o quê? Chamo os homê?
Chamo os bombeiros? A SAMU não adianta mais. Procuro o corpo pelas redondezas.
Só com os olhos porque eu é que não ia sair dando uma banda e procurando o
corpo naquelas bocadas tão mau iluminadas. Não via nada. Nada parecido com um
corpo num raio de duzentos, trezentos metros. Então era só uma cabeça sem
corpo. Pensei no Frankenstein e viajei que podia ser uma cabeça que alguém
estava trazendo do cemitério. Podia ser um carregamento de cabeças dentro de um
caminhão. Todas essas cabeças seriam usadas para criar um batalhão de
frankesntein que seriam treinados pelos americanos para destruírem o irã e o
iraque e todos os palestinos, judeus, libaneses, e todo aquele povo que arma há
quinhentos anos aquele barraco lá no oriente médio. Da onde que essa gente tira
tanto ódio? Acontece, que o motorista do caminhão dormiu na direção, meio que
subiu no cordão da calçada, o motora acordou, o caminhão deu uma forte
chacoalhada, a cabeça caiu pra fora da lona, ainda deu tempo das rodas de trás
do caminhão passarem por cima da cabeça que deu azar, quer dizer, azar duplo,
porque além de ser uma cabeça morta, ainda caiu da carroceria do caminhão,
bateu no muro e rolou pra perto do cordão da calçada bem há tempo de ser
esfacelada pelas rodas traseiras do veículo. E o motorista ainda se recuperando
do susto, sentiu mais um pequeno tranco nas rodas traseiras como se tivesse
passado por um pequeno quebra-mola, ainda olhou pelo espelho mas não viu a
porra da cabeça que rodopiou sobre si mesma espalhando um pouco de gosma e
miolos e quase caiu no bueiro ao seu lado. Que viagem! Sem saber bem por que,
sem saber o que se faz numa situação dessas porque eu nunca tinha visto uma
cabeça na beira de um bueiro, porque eu nunca vi num filme um cara enfrentando
uma situação semelhante, sem saber por que eu fiz exatamente aquilo, me
afastei, olhei pra frente e eu já tava no estádio do Beira-Rio. Estádio lotado.
Inter e Barcelona. Fomos pros pênalti. Era eu e o goleiro. Enxerguei os olhos
dele. Olhei pro juiz e de novo nos olhos do goleiro. Nunca que ele ia saber pra
onde eu ia chutar, eu já tinha escolhido o canto, corri pra cabeça, e emendei
um chutão de peito de pé que pegou bonito, pegou em cheio e sem piedade, o
goleiro se atirou inteiro, bonitaço, esticado pro lado direito, enquanto eu
engavetava um golaço no canto esquerdo, à meia altura, mandando a cabeça cheia
de baratas pro fundo das redes e marcando o gol que deu a vitória e o campeonato
mundial para o Inter.
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