terça-feira, 21 de outubro de 2008

MEMÓRIAS MEDÍOCRES 6 - FIAT CHICLETES



A vidinha nem sempre foi boa pra mim, mas mesmo assim me acho um sujeito de sorte. Não daquela sorte de nascer num berço de ouro, ou ter uma bela herança esperando por mim no fim do arco-íris, mas uma sorte pequena, necessária para que se tenha um bocado de felicidade e certas facilidades. Uma vez apenas a minha sorte manifestou-se como uma sorte de ganhar prêmios. Via de regra eu podia (e posso até hoje) entrar em qualquer concurso, apostar em qualquer jogo ou loteria, comprar qualquer rifa, que não ganharia de jeito nenhum. Mas ganhei um carro. Ganhei um Fiat 147 zerinho, no tempo que o Fiat 147 era o lançamento mais importante e moderno da Fiat. Quando me deram a notícia por telegrama não acreditei. Gastei o telegrama de tanto desdobrar para ler e dobrar novamente, incrédulo sempre, para guardar no bolso e logo abrir novamente para reler mais uma vez e adivinhar se era mesmo verdade.
Foi num daqueles concursos em que a gente escreve uma frase criativa sobre um produto, no caso Chicletes Adams, e a melhor frase ganha um prêmio, no caso o carro. Não era um carro qualquer, quer dizer, o que dava uma originalidade no carro era a pintura. O carro foi pintado como se fosse uma caixinha de chicletes e como o formato do veículo se prestava parecia mesmo que eu dirigia uma caixinha de chicletes. Era uma pintura bacana. Tão bacana que o pessoal da polícia se invocou e na hora de fazer a transferência e passar o carrinho para o meu nome, os babacas disseram que com aquela pintura não dava pra transferir porque era proibido e de acordo com a lei tal, número tal, do livro tal, não era possível. Eu tinha que pintar o carro de branco. Vendi o carro e comprei uma Brasília semi nova. Mas ganhei o carro com uma frase que era assim: Em caso de alta tensão, abra a caixinha e desligue-se. Não sei se era realmente boa, nem se foi realmente escolhida, talvez tenha sido sorteada, mas, de uma ou de outra forma, o carro foi meu.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

MEMÓRIAS MEDÍOCRES 5 - MEU PAI


Meu pai. Só de escrever assim já dá um peso. Para mim, é sempre difícil evocar a sua figura. Sempre fica um misto de amor e ódio. Tantas coisas que eu nunca soube sobre ele. Segredos. Lembro que um dia ele ficou doente. Teve uma isquemia cerebral, um troço neurológico que o deixou com o lado esquerdo do corpo semi paralisado. Eu era pouco mais do que uma criança, devia ter nove ou dez anos. Na verdade não me lembro direito quantos anos eu tinha. Talvez fosse doze. Ele parou de trabalhar. Minha mãe encarou dois empregos pra segurar a barra financeira da família e acho que também pra fugir um pouco daquela casa. O trabalho absurdo que ela encarou também lhe oferecia em troca, além de um dinheirinho curto, algumas amizades, alguma alegria distante de casa. assim, sobrou direto pra mim muitas novas obrigações tais como cozinhar, lavar a louça, a roupa, a casa, ou seja, auxiliar no trabalho até “mais do que se eu tivesse nascido uma menina” como sempre dizia minha mãe cada vez que lhe davam oportunidade de dizer isso. E meu pai chorava. Chorava por tudo. Diante da televisão assistindo programas os mais idiotas, novelas, filmes e chorando. Parece que a doença lhe abriu o chorador. Era completamente estranho ver meu pai chorando. Era completamente o contrário da imagem que ele construiu na sua vida inteira. Ele era forte, agressivo, autoritário, violento e cruel. E de repente meu pai chorava. Às vezes eu chegava em casa por volta da meia-noite vindo da escola (passei a estudar à noite naquela época) e antes de bater ou abrir a porta, ficava espiando-o por uma fresta: ele chorava muito. Seu corpo tremia com os soluços. As lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Ele ficava lá sentado na poltrona, com um cigarro entre os dedos chorando. Ele acendia um cigarro no outro e fumava e assistia televisão e chorava. Eu quase amava o meu pai quando espiava ele pela fresta da porta. Então eu batia na porta e ele secava os olhos e vinha abrir a porta arrastando sua perna esquerda que nunca mais voltou ao normal. Seu rosto também havia modificado bastante. Continuava gordo e vermelho com as entradas profundas na cabeleira precocemente branca, mas agora havia uma leve deformação do lado esquerdo e um olho mais caído do que antes, isso lhe modificava a expressão. Eu achei o máximo quando isso aconteceu. Adorei aquela inversão de poderes. Aquela doença caiu do céu. Acabou com aquele ditador que queria determinar toda a minha vida. Caiu o governo. Agora eu podia me soltar, governar a minha vida como nunca havia conseguido. Entrava e saia de casa a hora que queria. E quando ele tentava dizer-me alguma coisa e enquanto ficava la babando e gaguejando eu simplesmente mandava ele calar a boca. Ele espumava de raiva, tremia, babava mais, mas não tinha mais a força necessária para me bater como sempre fez. Não tinha mais energia suficiente para me controlar. Seu poder havia acabado. Eu reinava agora. Infelizmente, com o mesmo desamor, com a mesma raiva e o mesmo rancor que eu havia aprendido com ele.
Somente muitos anos depois de sua morte, mais de dez anos com certeza, é que senti realmente a falta que ele me fizera durante toda a minha adolescência. A falta que eu sentia de ter um pai para me abraçar e dizer alguma coisa. Embora, seja quase certo, que as coisas que ele me diria seriam merdas e não sei se ele teria abraços pra me dar. Mas sinto falta dele até hoje. Talvez agora a gente pudesse se abraçar, chorar juntos e dizer que um amava o outro. Meu pai.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

MEMÓRIAS MEDÍOCRES 4 - O CASAMENTO

Nunca pensei em começar estas memórias pela infância ou em obedecer a ordem cronológica dos acontecimentos (ou falta de), mas quando vejo a primeira coisa que contei foi sobre minha infância. Poderia ter começado pelo menos pela adolescência, ou pelo dia que fiz minha primeira peça de teatro, ou pelo dia do meu casamento. É verdade: eu casei. No civil e no religioso. Eu era todo metido a contra-cultura e coisa e tal, mas na hora agá a família nem precisou apertar muito pra eu aceitar o casamento. Até que foi bacana. A gente falava que ia se casar para contentar a família, mas isso era mentira. A gente casou porque foi criado desde sempre com uma moral babaca, cristã, que incluía o casamento como uma regra de vida, uma meta a ser cumprida. Casei na igreja Santo Antônio, no topo do morro do Partenon. Um casamento bem bonito, com uma noiva bem bonita e com muitos convidados bonitos. Meu pai, afetado por uma doença cruel e degenerativa compareceu e chorou. Ele chorava muito nessa época. Uma hora dessas vou dedicar uma destas horas pra escrever sobre meu pai. Depois da cerimônia na igreja Santo Antônio houve uma grande pequena festa na casa dos pais da noiva, na qual o pai da noiva, alcoólatra inveterado, encheu a cara de cerveja e, como era de costume, deu vexame total diante dos convidados constrangidos e falsamente compreensivos. Um desfecho desagradável para uma festa íntima que despachava o casal sorridente e apaixonado para uma vida em comum, que poucas chances tinham de dar certo, já que quem casa quer casa e este casal não tinha nem emprego que dirá uma casa para morar. Fomos morar na casa da minha mãe que era também chamada de minha casa.
Hoje, com a distância do tempo passado e um pouco mais maduro, penso porque o pai da noiva que era tão rígido na sua moral permitiu aquele casamento apenas baseado amor entre dois jovens absolutamente imaturos e completamente sem estrutura para casarem-se? Porque ele era um hipócrita, filho duma puta, que estava mais a fim de livrar-se da enteada. Na época, eu era estudante universitário, tinha vinte e um anos, era cheio de idéias sobre o futuro e tinha uma miserável bolsa de trabalho concedida pela universidade. Ela tinha vinte anos, era linda, estudante desempregada e sonhava em tornar-se modelo. Casamos.
Casei em outubro e meu pai morreu em dezembro sem ver a sua neta que nasceria em setembro do ano seguinte e foi concebida mais ou menos no mesmo período. Ciclo da vida? Enquanto ele fechava as contas e partia para a morada final, eu e minha jovem esposa (a quem eu amava perdidamente) nos dedicávamos a reproduzir e trazer à vida mais um ser.
Na foto, lá em cima, sou eu, no Motel Ipanema, em setembro de 1975, em plena lua de mel.