segunda-feira, 20 de outubro de 2008

MEMÓRIAS MEDÍOCRES 5 - MEU PAI


Meu pai. Só de escrever assim já dá um peso. Para mim, é sempre difícil evocar a sua figura. Sempre fica um misto de amor e ódio. Tantas coisas que eu nunca soube sobre ele. Segredos. Lembro que um dia ele ficou doente. Teve uma isquemia cerebral, um troço neurológico que o deixou com o lado esquerdo do corpo semi paralisado. Eu era pouco mais do que uma criança, devia ter nove ou dez anos. Na verdade não me lembro direito quantos anos eu tinha. Talvez fosse doze. Ele parou de trabalhar. Minha mãe encarou dois empregos pra segurar a barra financeira da família e acho que também pra fugir um pouco daquela casa. O trabalho absurdo que ela encarou também lhe oferecia em troca, além de um dinheirinho curto, algumas amizades, alguma alegria distante de casa. assim, sobrou direto pra mim muitas novas obrigações tais como cozinhar, lavar a louça, a roupa, a casa, ou seja, auxiliar no trabalho até “mais do que se eu tivesse nascido uma menina” como sempre dizia minha mãe cada vez que lhe davam oportunidade de dizer isso. E meu pai chorava. Chorava por tudo. Diante da televisão assistindo programas os mais idiotas, novelas, filmes e chorando. Parece que a doença lhe abriu o chorador. Era completamente estranho ver meu pai chorando. Era completamente o contrário da imagem que ele construiu na sua vida inteira. Ele era forte, agressivo, autoritário, violento e cruel. E de repente meu pai chorava. Às vezes eu chegava em casa por volta da meia-noite vindo da escola (passei a estudar à noite naquela época) e antes de bater ou abrir a porta, ficava espiando-o por uma fresta: ele chorava muito. Seu corpo tremia com os soluços. As lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Ele ficava lá sentado na poltrona, com um cigarro entre os dedos chorando. Ele acendia um cigarro no outro e fumava e assistia televisão e chorava. Eu quase amava o meu pai quando espiava ele pela fresta da porta. Então eu batia na porta e ele secava os olhos e vinha abrir a porta arrastando sua perna esquerda que nunca mais voltou ao normal. Seu rosto também havia modificado bastante. Continuava gordo e vermelho com as entradas profundas na cabeleira precocemente branca, mas agora havia uma leve deformação do lado esquerdo e um olho mais caído do que antes, isso lhe modificava a expressão. Eu achei o máximo quando isso aconteceu. Adorei aquela inversão de poderes. Aquela doença caiu do céu. Acabou com aquele ditador que queria determinar toda a minha vida. Caiu o governo. Agora eu podia me soltar, governar a minha vida como nunca havia conseguido. Entrava e saia de casa a hora que queria. E quando ele tentava dizer-me alguma coisa e enquanto ficava la babando e gaguejando eu simplesmente mandava ele calar a boca. Ele espumava de raiva, tremia, babava mais, mas não tinha mais a força necessária para me bater como sempre fez. Não tinha mais energia suficiente para me controlar. Seu poder havia acabado. Eu reinava agora. Infelizmente, com o mesmo desamor, com a mesma raiva e o mesmo rancor que eu havia aprendido com ele.
Somente muitos anos depois de sua morte, mais de dez anos com certeza, é que senti realmente a falta que ele me fizera durante toda a minha adolescência. A falta que eu sentia de ter um pai para me abraçar e dizer alguma coisa. Embora, seja quase certo, que as coisas que ele me diria seriam merdas e não sei se ele teria abraços pra me dar. Mas sinto falta dele até hoje. Talvez agora a gente pudesse se abraçar, chorar juntos e dizer que um amava o outro. Meu pai.

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