sábado, 4 de julho de 2009

ADEUS, MAMÃE


morreu minha mamãe. na verdade, nunca chamei ela de mamãe a não ser nos últimos anos. depois dos setenta que foi quando minha mãe virou velhinha. pelo menos foi quando eu a olhei e achei que ela estava ficando com cara e jeito de "vovó". antes, eu a chamava muito mais de laicy, ou, depois que nasceram meus filhos de "vó laicy". mas hoje eu disse "adeus, mamãe, vá com deus. que a existência divina crie um caminho de luz e te leve direto para junto dos anjos e de nossa senhora. adeus, mamãe. obrigado por tudo que tu me deu. pelo amor de mãe que tu tinha por mim. a gente sempre pensa que as pessoas não vão morrer nunca e acaba não falando as coisas. quantas vezes fui na tua casa e ficava te ouvindo as histórias e não falava as coisas que achava que devia te falar. que coisas eram essas? que eu te amava, por exemplo. que às vezes eu queria um colo teu. eu gostava muito quando a gente sentava pra tomar vinho e conversar. não sei porque eu não ia mais vezes, mais seguidamente na tua casa. eu podia realmente sentir a tua solidão. eu sabia que era horrível ficar tão sozinha. eu me culpava por não ir mais seguido até a tua casa. e sentia saudade. e não ía. eu sabia que tu estava pedindo socorro quando quebrava o braço, depois o ombro e depois o braço de novo. e sabia que tu ficava feliz porque a gente tinha que se ver quase todos os dias pra fazer a fisioterapia naquele lugar horível. e eu ficava contente quando era carinhoso contigo e te massageava as costas. quando eu era criança eu te acariciava tanto e depois... onde foi que isso se perdeu? porque isso se perdeu? será que fiz tudo certo? sempre tive a certeza de que eu não era um bom filho. sempre me senti em dívida. a sensação que eu tinha (tenho) é que nunca fui suficientemente bom. e parece que tu morreu com a mesma impressão. a de que tu nunca foi suficientemente boa para mim. por que fizemos isso um com o outro? sempre me senti mentindo quando dizia que trabalhava muito ou que tinha pouco tempo. na real, fiquei muito assustado com tudo isso. com medo. confuso. mais confuso do que tenho andado nestes últimos quatro anos. da nossa entrada no carandiru até eu ti ver num saco de plástico no necrotério, um turbilhão de coisas se passaram em mim. muitas perguntas sem resposta. porque a vida é assim? a gente é só este corpo e acabou? que idiotice é essa de envelhecer e ir ficando cada vez mais debilitado e senil e gagá e decrépito? pra que tudo isso? qual o plano? minhas costas doem muito. parece que eu tenho uma faca cravada nas costas. adeus, mamãe. como foi ruim ti ver partir. coloquei a mão na tua barriga que um dia foi a minha casinha e me senti tão teu, tão ligado a ti. que grande amor sentimos um pelo outro. levei um choque quando entrei com minha mamãe no "carandiru". assim é chamada uma anorme ala do grupo hospitalar conceição que recebe dezenas de pessoas na emergência. fazem uma triagem e quando a coisa é séria eles internam o paciente e deixam ele esperando um leito estacionado no carandiru, que é uma sala onde cabem, digamos, 40 pessoas, e tem uns 150 lá dentro. tem cama, tem maca, tem cadeiras de roda, tem cadeira normal e um batalhão de enfermeiras, auxiliares e atendentes se esgueirando em estreitos corredores. Uma outra característica do carandiru é que ele tem de tudo. só não vi sangue. aliás, o lugar lembra aquelas enfermarias de filme de guerra, só que sem sangue. mas tem de tudo. fiquei imaginando as trocas de vírus, germes, bactérias e outros bichos que circulam por ali. minha mãe chegou com uma infecção no pulmão, e os outros 149? cada um tinha uma merda diferente. e tudo isso circula no carandiru do conceição. fiquei apavorado. tomei um choque de realidade e de miséria humana. adeus, mamãe. vai com deus. me protege.

Nenhum comentário: