quarta-feira, 28 de julho de 2021

MEMÓRIA 03 - FARRA DE TEATRO

 


No ano de 2002 o Depósito de Teatro estava de vento em popa. Um dos grupos mais importantes de Porto Alegre, um dos poucos que tinha uma sede e, com a bem sucedida montagem de “O Pagador de Promessas”, começava a ser reconhecido nacionalmente.
Naquela época o grupo era composto por Roberto Oliveira, Sandra Possani, Liane Venturella, Maria Falkembach e Sérgio Etchichury. Quando chegava o final do ano a gente tinha o hábito de fazer uma reunião que tinha como objetivo pensar e decidir sobre o que seria feito no ano seguinte. Procurávamos uma ideia com um objetivo principal em mente: o que fazer no verão de 2003 que proporcionasse recursos pra gente pagar o aluguel do espaço em janeiro e fevereiro.
Surgiram muitas ideias mas nenhuma era suficientemente boa para agradar a todos. Lá pelas tantas eu falei: porque a gente não faz uma versão daquele trabalho daquele cara que morreu e que esteve aqui naquele Porto Alegre em Cena? Aquele que tu (Maria) e tu (Sandra) participaram? A gente poderia recriar a ideia do cara. Seria uma homenagem e o espetáculo era muito bom.
O cara que havia morrido era o diretor carioca Márcio Viana, que havia falecido no auge de sua promissora carreira, o espetáculo era a “Farra dos Atores”, que havia sido apresentado no Festival Porto Alegre em Cena de 1996. O espetáculo era montado da seguinte maneira: O Márcio e integrantes do seu grupo passaram uma semana inteira ensaiando com atores e atrizes daqui de Porto Alegre que foram convidados pela produção do Em Cena pra participar do evento. Ensaiaram durante a semana e fizeram duas apresentações no final de semana no saguão da Usina do Gasômetro.
Eu lembrava que corriam muito e que era muito emocionante. Lembrava que corriam muito, que durava muitas horas, que tinha música e que prendia a atenção da gente por causa das cenas impactantes, vibrantes, feitas por uma galera, por um elenco numeroso. A Maria e a Sandra confirmaram minhas lembranças pois também elas haviam sido marcadas pela experiência de ter participado daquela Farra. Todo mundo ficou feliz com a ideia e ficou decidido que este seria o próximo trabalho do grupo.
A gente começou então a relembrar como era a encenação. A Maria lembrava de algumas cenas, a Sandra lembrava de outras partes do espetáculo. Conversamos com atores e atrizes porto-alegrenses que haviam participado da experiência dirigida pelo Márcio. Fomos juntando os fragmentos de memórias. Costurando lembranças de uns e de outros fomos reconstruindo o espetáculo. Onde ficava um buraco a gente inventava uma cena. Onde ninguém lembrava a gente mesmo criava algo novo.
E assim, começamos a divulgar uma oficina que resultaria na nossa primeira Farra de Teatro prevista pra acontecer no verão de 2003. Como um dos objetivos era conseguir dinheiro pra pagar os aluguéis, para participar na Oficina o candidato tinha que pagar. Infelizmente, apareceram poucos candidatos. Mas, como sempre, resignados, levamos o projeto adiante. Se bem me lembro, eu a Sandra e a Maria nos encarregamos de puxar a primeira Farra de Teatro do Depósito.
A apresentação foi num domingo no Bric da Redenção. Como eram poucos participantes fomos obrigados a mudar o formato. Trocamos a corrida em círculo por uma espécie de parada, uma fila indiana que desfilava pela José Bonifácio, parava em algum ponto determinado, formava uma roda e apresentava uma cena. Mesmo com poucos participantes foi um evento. Lembro que a cena do beijo foi polêmica porque teve beijo homossexual. O público se dividiu em vaias e aplausos. Era uma Farra colorida e diferente. Sem música, mas seguia a cadência de um bumbo que marcava o desfile, o início e o final das cenas.
A nossa experiência com a Farra poderia ter terminado por aí, se não fosse o Fórum Social Mundial ter convidado o Depósito de Teatro para realizar uma atividade no eixo temático “Artes e Criação: construindo as Culturas de Resistência dos Povos”, dentro da programação artística do grande evento que estava mobilizando o mundo e direcionando todos os olhares do planeta para Porto Alegre. Desta vez foi a Maria que sugeriu que fizéssemos a Farra outra vez. Topamos. Convidamos o Renato Del Campão (que havia participado do espetáculo do Márcio Viana) para nos ajudar a reconstruir o mais fielmente possível o que era a Farra dos Atores.
Assim, em 2005, em pleno Fórum Social Mundial, no gigantesco espaço do Anfiteatro Pôr do Sol, para um público estimado em 6.000 pessoas, estreava a Farra de Teatro com um elenco de mais de cem atores. A experiência foi linda, ímpar, brilhante e teatralmente maravilhosa. Foi emocionante. Uma apresentação de arrepiar. Quem fez e quem viu jamais poderá esquecer.
Juntamos as cenas que conseguimos recuperar de memória com outras cenas que inventamos. Havíamos feito diversas reuniões com o DJ Damon Meyer (que e o DJ oficial da Farra) para escolher a play list das músicas que dariam o comando das cenas para o elenco. Havíamos ensaiado exaustivamente com toda a galera na Praça do Tambor durante a semana anterior. Foi um trabalhão enorme, mas fomos plenamente recompensados pela satisfação de tocar o público com um verdadeiro acontecimento teatral. Tenho certeza de que se o Márcio Viana visse, ele teria aprovado a nossa Farra de Teatro que seguia os moldes da sua genial Farra dos Atores.
Depois desta fantástica arrancada a Farra de Teatro continuou encantando artistas e plateias ao longo dos anos. Transformou-se num grande evento realizado anualmente no estacionamento da Usina do Gasômetro. Quem mais incentivou (e financiou) a continuidade da Farra foi o diretor Caco Coelho, que sendo um homem de teatro, com uma visão aberta e abrangente percebeu o riquíssimo potencial artístico e humano da Farra. Também Breno Ketzer, Coordenador de Artes Cênicas do município, se dobrou aos encantos do espetáculo e colocou durante anos a Farra na programação oficial de aniversário da cidade.
A Farra de Teatro foi apresentada ininterruptamente de 2006 até 2016. No início acontecia no feriado de 15 de novembro, depois passou pra março na Semana de Porto Alegre. Aí entrou o governo neo-liberalóide do Marchezan relegando a cultura e a arte aos mais baixos patamares já vistos em nossa cidade. Querendo privatizar tudo. Vender os teatros, os cinemas, a Usina. E tivemos que fazer a Farra de 2017 de maneira independente. Os recursos foram batalhados numa campanha no Catarse, movidos pela raiva e por nossa vontade. Conseguimos juntar 70% do valor e fizemos assim mesmo. Tristemente foi a última edição da Farra de Teatro.
Como nas memórias anteriores eu teria ainda muita coisa pra lembrar. Olho as fotos e brotam recordações de momentos, de pessoas, acontecimentos extraordinários. Eu poderia ficar rico se cada pessoa que fez a Farra me mandasse um PIX de 10 reais. É muita gente. Me emociona ver as fotos. Muita coisa pra escrever. Outro dia eu voltarei ao assunto.
E a Farra de Teatro será que ainda vai voltar?
A MAIORIA DAS FOTOS SÃO DE KIRAN FOTOS
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